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  • Laura Mulvey, o prazer visual e Enigmas da Esfinge

    Ensaio

    por Jerónimo Atehortúa

    É difícil encontrar textos críticos ou teóricos que tenham tido uma influência direta na história do cinema. O impacto da teoria é quase sempre indireto, ocorrendo retroativamente na maneira como vemos o cinema do passado ou como parte de um senso comum que vai sendo criado ao longo dos anos, após a publicação dos textos. Em alguns poucos casos, contudo, um texto tem tamanha clarividência ou aponta uma verdade tão peremptória que é difícil que o cinema não atente a ela. Nesse grupo se inclui, sem nenhuma dúvida, o ensaio Prazer Visual e Cinema Narrativo, de Laura Mulvey (1941), publicado em 1975 na revista britânica Screen. O aparecimento desse ensaio não só gerou milhares de páginas de nova teoria, como também influenciou gerações de cineastas feministas de vanguarda que consideraram este texto como um manifesto político.

    O ensaio de Mulvey, que surgiu no auge do pós-estruturalismo acadêmico e da teoria lacaniana, expõe as formas pelas quais o sistema hegemônico de representação do cinema (principalmente Hollywood e seus imitadores) reproduz e reforça a dinâmica de dominação patriarcal por meio de sua estrutura visual e narrativa. A tese do texto gira em torno do conceito de “olhar masculino”. Para Mulvey, o cinema clássico, e seu esquema narrativo, é articulado a partir de uma perspectiva masculina heteronormativa. O cinema, por meio de sua linguagem, constrói um olhar, que é sempre o de um homem. Assim, o cinema se estabelece como uma máquina de deleite libidinal dirigida por e para um homem. No cinema clássico, a ação é sempre ativada por um objeto de desejo, o corpo feminino, que se torna matéria de consumo, ao passo que o homem é quem controla a história como sujeito perceptivo e ativo.

    O texto de Mulvey revelava algo que hoje parece evidente: historicamente, no cinema narrativo, a representação feminina tem sido deficiente. As mulheres tendem a ocupar um lugar passivo na trama, seus corpos são extremamente sexualizados, enquanto seus homólogos masculinos controlam os fios argumentais. Em outras palavras: o cinema narrativo, ao se valer do prazer visual em torno do corpo feminino, apresenta-se como uma forma de violência simbólica que objetifica as mulheres e, como consequência, as marginaliza e reforça os estereótipos tradicionais.

    Para definir o verdadeiro conteúdo do "olhar masculino" Mulvey usa um conceito da psicanálise, a escopofilia. De acordo com a teoria lacaniana (principalmente a de Christian Metz), a posição de voyeur, na qual o espectador está situado, desempenha um papel fundamental na experiência cinematográfica. O cinema narrativo depende de produzir no espectador o prazer de observar. O cinema é uma experiência que gratifica o desejo por meio do olhar. O cinema hegemônico, aliás, se baseia em um sistema de identificações em que o espectador (que se supõe ser um homem) acredita ser o protagonista masculino; posteriormente, como resultado dessa identificação, se instala em seu olhar o desejo por uma personagem feminina, cuja possível constituição como sujeito é anulada. A conhecida fotogenia que o cinema reforça em suas personagens femininas por meio de procedimentos estilizados de montagem, enquadramento, mise-en-scène e iluminação expressiva ajuda a fragmentar o corpo da mulher para produzir desejo e anular sua agência.

    O texto de Mulvey teve uma incidência política subversiva em seu apelo específico para a criação de um novo cinema. Prazer Visual e Cinema Narrativo sugere que a forma de enfrentar o cinema hegemônico, cuja estrutura sustenta uma visão patriarcal do mundo, é destruindo o prazer escopofílico que o sustenta. Ao eliminá-lo, o olhar masculino hegemônico necessariamente colapsa e surgem formas de representação muito mais horizontais. Para Mulvey, um novo cinema deve abalar as estruturas narrativas tradicionais. Para isso, é preciso introduzir técnicas disruptivas tipicamente brechtianas, como a fragmentação, a interrupção da narrativa ou a inclusão de formas experimentais em que o espectador é confrontado com o material fílmico.

    A partir desse texto, e amplamente influenciado por ele, surgiu o Contra Cinema (Counter Cine), cuja ideia era eliminar qualquer indício de prazer visual na imagem cinematográfica para criar uma nova linguagem audiovisual. O entretenimento e a narrativa eram vistos como ferramentas reacionárias. O resultado foi agridoce porque dele surgiu um cinema de grande inventividade, mas ao mesmo tempo hermético e distante de todos os públicos, pois havia renunciado ao poder que fez do cinema a grande arte do século 20: sua capacidade para atrair grande quantidade de público. A própria Mulvey chamou o efeito inicial desse texto no cinema de vanguarda de “terra arrasada”. Foi um cinema radical, que não deixou nada das velhas estruturas de pé, mas que também foi efêmero. Essa abordagem do cinema gerou ansiedades e uma espécie de crueldade acadêmica em sua missão de destruir toda a experiência prazerosa do cinema.

    Laura Mulvey também reconheceria mais tarde que esse era apenas um estágio em sua visão do cinema e que, na verdade, suas palavras tinham sido tomadas muito ao pé da letra. Teresa de Lauretis, em Alice Doesn't, comprovaria até mesmo o contrário: um cinema que destrói o entretenimento e que não se articula em torno do prazer não garante a articulação de um olhar horizontal e não patriarcal. Isso não impediu a enorme influência do ensaio, que teve muitos outros desdobramentos na criação cinematográfica. Cineastas como Bette Gordon, Nina Menkes e Katherine Bigelow receberam sua influência direta. Pode-se dizer também que a tendência contemporânea de fazer reversões de sucessos pop com protagonistas femininas é consequência deste texto.

    O enorme sucesso do ensaio de Mulvey às vezes ofusca o fato de o seu pensamento também ter sido acompanhado por uma rigorosa e ousada incursão no cinema em que procuraria pôr em prática algumas das ideias expostas no ensaio e em outros escritos seus. Juntamente com o escritor e teórico britânico Peter Wollen faria quatro filmes, dos quais talvez o trabalho mais notável seja Enigmas da Esfinge. Nesta obra fundamental do cinema feminista de vanguarda, Mulvey e Wollen utilizam diversas técnicas das artes modernistas para refletir sobre a posição social e política da mulher na sociedade contemporânea, sempre mediada pela obrigação de realizar trabalhos de cuidado não remunerados.

    O filme apresenta, mas não dramatiza, a história de uma dona de casa que gradualmente começa a ter interesses políticos enquanto reflete sobre sua própria opressão diária. A própria Laura Mulvey aparece no filme teorizando. No primeiro ato, falando diante da câmera, ela explica que sua obra será narrada pela esfinge, criatura mitológica, extremamente complexa. No mito de Édipo, a esfinge, constituição híbrida de humano, animal, ave, faz perguntas aos homens da cidade de Tebas. E devora aqueles que não respondem corretamente. Consequentemente, conclui Mulvey, a esfinge, com suas perguntas, ameaça a ordem patriarcal.

    A reapropriação da figura da esfinge na tragédia de Sófocles Édipo Rei é uma forma de oposição à interpretação freudiana canônica que reduz o mito a uma representação do desejo patriarcal. Segundo Mulvey e Wollen, a esfinge é a figura esquecida da tragédia porque ela coloca o enigma essencial da linguagem: esta é a única forma de ter acesso à verdade, mas é também a forma pela qual a realidade nos é ocultada.

    A personagem principal do filme é Louise, uma dona de casa profundamente apegada à filha. Mas isso não a impede de sentir a necessidade de trabalhar e não depender do marido. O filme mostra como as mulheres estão presas em um regime contraditório e enlouquecedor. Por um lado, a sociedade afirma a necessidade do trabalho feminino, até o deseja; mas essa mesma sociedade também é rápida em repreendê-lo, culpando a mulher por negligenciar os papéis femininos de mãe e esposa. Essa esquizofrenia social se manifesta na ausência de condições necessárias para o trabalho remunerado da mulher. Ao fazer isso, Mulvey e Wollen afirmam que “o olhar masculino” não é apenas uma questão de articulação da linguagem cinematográfica, mas também está presente na criação dos espaços em que ocorre a vida pública e a privada.

    Enigmas da Esfinge transita entre elementos do cinema de vanguarda, do modernismo de Jean-Luc Godard e das técnicas do teatro épico de Brecht. O capítulo central do filme é composto de 13 planos encabeçados por um texto sempre incompleto, que deve ser continuado pela imagem, e que conta a história da personagem principal. São 13 planos-sequência, em panorâmicas circulares de 360 ​​graus, nos quais são narrados acontecimentos do cotidiano. Mulvey e Wollen usaram essa mise-en-scène e essa câmera para construir uma narrativa não escopofílica. Ao evitar a articulação por meio da montagem analítica e da fragmentação do plano e do contraplano, eles impedem que a linguagem se expresse em torno da continuidade dos olhares, típica do cinema. Dessa forma, criam planos horizontais que se estendem não apenas no tempo, mas no próprio desdobramento da duração no espaço. Outros episódios do filme são constituídos por sequências puramente sensoriais, de cariz experimental. No entanto, o filme ultrapassa os limites do cinema experimental ao entrar em territórios mais profundos. Inspirados por Godard, que considera que o cinema é, antes de mais nada, uma forma sensível que pensa, Mulvey e Wollen criaram uma obra em que a narrativa continua presente, mas mergulhada em complexos problemas políticos e formais. O resultado é um filme que eles mesmos chamaram de "teórico". Enigmas da Esfinge é uma das primeiras tentativas decididamente filosóficas de usar o cinema para fins de reflexão, além da mera narração. Com esse filme, eles reivindicaram para o cinema algo que sempre foi patrimônio da palavra escrita: a capacidade de pensar por meio de categorias abstratas.

    Usando elementos totalmente estranhos ao cinema narrativo hollywoodiano, o filme se opõe à representação da mulher como objeto erótico, rejeitando enfaticamente essa maneira de enxergá-la. Em vez disso, se aventura na experimentação de códigos formais não voyeurísticos. Esta obra se distingue pela recusa em aderir ao conforto e à plenitude narrativa do paradigma convencional e predominante explorando, em vez disso, novos caminhos estilísticos e discursivos.

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