Por que a escolha?

Com o aparecimento das novas correntes historiográficas da segunda metade do século 20 foi possível reconhecer algo que deveria ter sido óbvio: as mulheres também promoveram as revoluções políticas, científicas e estéticas do Ocidente, e a falta abominável de personagens femininas nas narrativas históricas nada mais é do que outra demonstração absurda de força na complicada estrutura de poder que o patriarcado sustenta em seus discursos.

Nesse sentido, as histórias dominantes sobre o Iluminismo, que marcou a ascensão da burguesia e do pensamento científico e o declínio da nobreza na Europa do século 18, retratam um meio intelectual aparentemente despovoado de mulheres, ou no qual elas aparecem como pano de fundo, em posições de mecenato, serviço ou de franca submissão. Embora seja verdade que as convenções da época não lhes permitiam maior espaço, não é menos verdade que tanto na educação quanto na política, por exemplo, a figura da mulher alfabetizada foi definitiva para a circulação das novas ideias da modernidade, mesmo que elas tenham sido condenadas a um anonimato ainda intransponível.

Em A Longa Vida de Marianna Ucrìa, a italiana Dacia Maraini (1936) urde o enredo perfeito para condensar em um único personagem muitos dos aspectos por meio dos quais as mulheres moldaram o século 18 europeu: uma aristocrata, estuprada quando pequena, fica surda-muda e vive relativamente distanciada de sua própria classe, alheia ao seu próprio corpo, imersa em perigosas leituras racionalistas. Ao mesmo tempo, ela continua sujeita à reprodução das violências que mantêm sua família aferrada a privilégios cada vez mais incertos, uma vez que as mulheres eram absolutamente essenciais para a nobreza na preservação da propriedade por meio da herança, do casamento e da descendência.

A vida de Marianna e das mulheres que a rodeiam, não apenas as aristocratas, conta uma parte importante de uma história parcialmente desconhecida da Europa.