Por que a escolha?

No conjunto de obras que compõem o cânone literário de "Robinsonadas" –na maioria histórias sobre homens (quase todos cidadãos de impérios europeus) perdidos ou confinados em ilhas desertas ou semidesertas, que dominam a natureza (e, às vezes, outros homens) em virtude de sua virilidade e engenhosidade–, o Robinson da escocesa Muriel Spark (1918-2006) se destaca por ser o único escrito por uma mulher –e com uma mulher como protagonista– que é frequentemente citado como referência obrigatória desse subgênero em que os únicos nomes inapeláveis são os de William Shakespeare, Daniel Defoe e Johann Wyss.

Autor de ficções delirantes e intrincadas com uma espessura metafísica sensível, de enredos filosóficos brilhantes com um apelo misterioso para o grande público, o sucesso inicial de Spark não conseguiu, no entanto, que este livro tivesse a consideração que goza hoje, como uma espécie de tesouro resgatado; pelo contrário, por muito tempo foi considerado o mais desconcertante e críptico, bem como o mais confusamente autobiográfico de seus romances, pois nele se percebe o rastro de seu curto e tortuoso casamento com o violento pai do seu filho.

January, a narradora, uma católica convertida e a única mulher sobrevivente de um acidente de avião, vive com dois outros passageiros na ilha de um misantropo chamado Robinson, cuja única companhia é um menino português de poucas luzes. Em seu relato sobre os dias que passaram enquanto esperavam o resgate, a mulher desmistifica com ironia e sensibilidade a enteléquia do homem autossuficiente e expõe a precariedade moral e espiritual daqueles homens incapazes de cuidar de alguma coisa (nem mesmo de uma horta), o comportamento destrutivo e avassalador deles com o meio ambiente e com os outros, e também ilumina as situações que os tornam frágeis e vulneráveis ​​em sua masculinidade, principalmente em relação a ela mesma, pois pretendem impor a ela o desamparo que eles mesmo sentem.