Por que a escolha?

Antes da eclosão das manifestações artísticas que, em meados do século 20, surgiram no âmbito do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos, ocorreu em Nova York, nas décadas de 1920 e 1930, o chamado “Renascimento do Harlem”: um conjunto de expressões que reivindicavam os modos de sentir, pensar e agir das comunidades racialmente segregadas, desde a música e o teatro até a moda e as ciências sociais. Da mesma forma, antes de nomes como Toni Morrison e Maya Angelou irromperem no cenário literário da década de 1970, a etnógrafa, documentarista e narradora afro-americana Zora Neale Hurston (1891-1960) já se destacava por suas histórias, nas quais retratava costumes, crenças, estereótipos e desigualdades das populações negras no Sul do país e do Caribe, com foco especial na vida e na sensibilidade das mulheres.

E embora as desigualdades que ela expôs em seus textos a tenham levado a morrer na pobreza, enterrada durante anos sob uma lápide sem nome, Hurston conseguiu alcançar algum sucesso comercial e algum prestígio na esfera intelectual do “Renascimento do Harlem”, especialmente devido ao livro de crônicas Mules and Men e ao romance Seus olhos viam Deus, que Alice Walker chamou de a “história de amor mais sexual e sensual entre negros”.

Ambientado nas cidades segregadas da Flórida, o romance acompanha a vida de Janie, uma mulher que rejeita a ideia tradicional de que o casamento proporciona uma segurança necessária em troca de uma obediência irrestrita. Até bem entrada em anos, ela busca encontrar um relacionamento mais igualitário. Ao narrar a história de amor entre Janie e o jovem Tea Cake, Hurston não ignora, entretanto, a violência sexista estrutural de sua própria comunidade, nem a violência racista a que as populações negras estão sujeitas. Por isso, ela afirma que, sendo serva do marido escravizado, “a mulher negra é a mula de carga deste mundo”.